terça-feira, 11 de outubro de 2016

Olhar Feminino das Escrituras: “Lia: A Vitória Contra a Idolatria do Coração”

Quando se fala nos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, e suas respectivas esposas, pensamos em Sara, Rebeca e Raquel. Jamais ouvi alguém citar Lia como esposa de Jacó e exemplo de vida piedosa e de confiança em Deus. Uma simples consulta a qualquer banco de dados de um cartório revelará inúmeros registros com o nome Raquel, mas poucos com o nome Lia. No entanto, esta é uma das maiores injustiças que a galeria dos antigos crentes poderia ter feito com alguém de importância tão significativa nas narrativas bíblicas. Raquel recebeu destaque por sua beleza. Afinal ela era “formosa de porte e de semblante” (Gn 29.17). Também foi vista primeiro por Jacó, quando este chegou de viagem até o poço onde as ovelhas bebiam. Lia tinha “os olhos baços”, literalmente “fracos” ou “tristes” (Gn 29.17). Seja qual fosse a cultura naquele tempo, Lia não estava dentro do padrão de beleza que chamasse a atenção; não era bela, não causava encanto. Curiosamente, Jacó buscou a beleza em primeiro lugar e se apaixonou por Raquel. Mais tarde, a Escritura iria registrar: “enganosa é a graça e vã a formosura, mas a mulher que teme ao Senhor, esta será louvada” (Pv 31.30).
Analisando as Escrituras, percebemos que Lia viveu debaixo da graça de Deus. Mesmo quando ela fraquejou em seu compromisso de obediência a Deus, ela se arrependeu e se quebrantou diante do Senhor. Vejamos alguns momentos de sua história.
O Casamento de Lia com Jacó (Gn 29.18-30)
A Bíblia não relata detalhes sobre a vida familiar de Lia antes de seu casamento. Muito menos traça dados sobre a sua personalidade e sobre suas crises. É bem possível que ela tivesse visto sua irmã ser elogiada, poderia ser que ela se sentisse sempre preterida, complexada pelo defeito nos olhos. Certamente Lia possuía todos os motivos para sentir-se mal com a maneira como fora tratada. Seu pai a tratou como uma mercadoria e, ainda por cima, como objeto de golpe, enganando a Jacó. Ele havia trabalhado sete anos por Raquel, mas Labão conduziu Lia para a consumação do casamento. A Bíblia não fala se Lia concordou com o plano de Labão. De uma forma ou de outra, o casamento com Jacó representou uma oportunidade para quem era preterida. Enfim, após um grande banquete, provavelmente com consumo de vinho, como era costume, Jacó não percebeu que a esposa que ele recebeu não era sua preferida, mas sua irmã, Lia. No dia seguinte à noite de núpcias, Jacó caiu em si e percebeu que sua esposa não era quem ele desejava que fosse. Sua afirmação a Labão talvez tenha piorado ainda mais o sentimento de rejeição de Lia, se é que ela ouviu o que ele disse. Ele protestou contra Labão dizendo que havia trabalhado sete anos por amor a Raquel e não por amor a Lia. Uma simples análise lógica levaria qualquer um a concluir que ele não amava a Lia mesmo. Ao final da semana, aquilo que poderia ser um sonho se torna um pesadelo. Labão concede Raquel como esposa de Jacó. Agora não apenas foi rejeitada e tratada como mercadoria. Lia teve de amargar testemunhar a preferência clara de Jacó pela sua irmã e rival àquela altura. No entanto, dos males, o menor: a Bíblia agora não continua a demonstrar repulsa de Jacó por Lia; apenas diz que ele amava mais a Raquel do que a Lia (v. 30).
 A Luta de Lia Contra o Ídolo do Coração (Gn 29.31 – 30.21)
Umas das coisas mais interessantes de se observar na história de Jacó e seu casamento desastrado e marcado pela rivalidade entre Lia e Raquel é como a idolatria do coração é revelada nas entrelinhas do relato. Idolatria é quando alguém deposita sua confiança e esperança de satisfação em qualquer outra coisa que não seja o Senhor Deus. Qualquer coisa que tome o lugar de Deus em nossa vida é ídolo, ainda que não seja um objeto esculpido ou modelado, como os ídolos de Labão que Raquel furtou. O primeiro mandamento trata justamente desse problema quando diz: “não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20.3). O ídolo do coração é aquele que está lá no íntimo e que motiva o viver e as atitudes no dia a dia. O problema, segundo Calvino, é que coração humano corrompido é uma fábrica de ídolos. Tenha esperança de satisfação em alguém ou tema a outro ser humano no lugar de Deus, buscando agradá-lo para receber algum benefício em troca e você estará completamente curvado diante de um ídolo do coração. Esse era o grande conflito de Lia. Ela tinha no marido a sua esperança de satisfação. Seu temor não era, na maioria das vezes, do Senhor, mas de perder seu marido ou de não conseguir conquistá-lo. Observe o texto de Gênesis 29.31ss e isto ficará bastante claro. Primeiro, vemos a graça maravilhosa de Deus, que a contemplou em sua tristeza. Às vezes nos sentimos solitários e abandonados por uma razão ou outra, mas o fato de Deus ver que Lia era desprezada deveria nos encher de encorajamento, pois assim como o Senhor Deus prestou atenção em sua carência, ele sabe de cada detalhe de nossa vida e tem poder para reverter qualquer situação num piscar de olhos. Assim, vendo o Senhor que Lia era desprezada, a abençoou com o privilégio de ser mãe. Ela engravidou, ao passo que Raquel, sua irmã e rival, não podia ter filhos. Lia em princípio reconheceu a providência divina ao dizer que o Senhor a havia atendido em sua aflição (Rúben, o nome do primeiro filho, significa “veja, um filho”). No entanto, logo em seguida, revela a verdade da idolatria de seu coração: “Por isso, agora me amará meu marido” (v. 32). Esse era o real objetivo dela. Sua motivação girava em torno do marido e do desejo de se satisfazer com sua atenção e carinho. O coração dela não era do Senhor, mas de Jacó! Ainda assim, o Senhor concedeu a ela o privilégio do segundo filho. Ela menciona o Senhor em sua declaração, mas ainda assim revela a persistente idolatria do coração: “Soube o Senhor que era preterida e me deu mais este; chamou-lhe, pois, Simeão” (v. 33 – Simeão significa “aquele que ouve”). A referência a sua preterição é uma referência ao fato de que sua esperança de satisfação em Jacó ainda não havia sido concretizada.
O Senhor lhe deu ainda um terceiro filho, e sua idolatria por Jacó persistia declaradamente: “Agora, desta vez, se unirá mais a mim meu marido, porque dei à luz três filhos; por isso, lhe chamou Levi” (v. 34 – Levi significa “unido”). Foi somente na quarta gravidez que parece que Lia entendeu que sua motivação de vida não podia ser o marido. Então, quando ela enfim fica grávida daquele que é o precursor do Messias, Judá (“ele será louvado”), ela enfim prorrompe em louvor sincero a quem deveria ter sido amado e desejado mais que todas as coisas desde o início: “Esta vez louvarei ao Senhor” (v. 35). A luta de Lia contra a idolatria do coração poderia ter cessado com o advento de Judá, mas não foi o que aconteceu. Os versículos 9-13 de Gênesis 30 mostram Lia perdendo completamente a compostura oferecendo sua serva Zilpa a Jacó para ter filhos através dela. Ao primeiro chamou Gade (“boa sorte”) e ao segundo Aser (“feliz”), como se sua satisfação estivesse mesmo em ter filhos como estratégia para conseguir o que julgava ser a única fonte de satisfação. Depois disso, Rúben achou mandrágoras no campo e as entregou a Lia. As mandrágoras eram consideradas ervas afrodisíacas que promoviam a fertilidade. Assim podemos ver tanto as raízes pagãs de Lia como de Raquel, ao atribuírem às mandrágoras uma importância que realmente não tinham. O fato é que Raquel cobiçou as mandrágoras. Lia revelou mais uma vez que Jacó era seu ídolo do coração lamentando que Raquel já havia levado seu marido e que não era justo que agora, além disso, ainda quisesse levar as mandrágoras. Mas a proposta de Raquel pareceu irresistível: as mandrágoras por uma noite de Jacó com Lia. Agora a mercadoria é o próprio Jacó. Ainda assim, Deus a abençoou com mais um filho. O texto nos permite contemplar a luta de Lia quando ela demonstra ter sido um erro o ter dado sua serva a Jacó. Lia se quebrantou diante do Senhor e reconheceu o favor divino atribuindo à sua bondosa providência mais dois filhos: Issacar (“recompensa”) e Zebulom (“honra” ou “dote”). No entanto, continua esperando que os seis filhos lhe tragam a preferência do marido. A idolatria insiste em permanecer no coração. Somente Deus é capaz de quebrar as amarras da servidão aos ídolos do coração.
A Vitória da Graça de Deus
Depois de anos de rivalidade, vemos, enfim, que Lia parece ter superado sua idolatria por algumas razões. Em Gênesis 31.14-16, tanto ela como Raquel parecem estar unidas no mesmo propósito. Isso é sinal de que sua idolatria, razão da rivalidade, havia sido superada. Deus é invencível em sua graça e muda o caráter de quem quer que seja quando quer. Até o final do livro de Gênesis, não vemos mais relatos de Lia depositando sua esperança de satisfação em Jacó ou rivalizando-se com sua irmã. Lia foi honrada em sua morte, pois foi sepultada no mesmo local em que haviam sido sepultados Abraão, Sara, Isaque e Rebeca. O próprio Jacó pediu a José que o sepultasse lá junto a ela quando ele morresse. E a última menção de Lia na Bíblia manifesta que, de fato, a graça de Deus operou de forma triunfante em sua vida. Em Rute 4.11, Lia, assim como Raquel, são mencionadas como mulheres sobre as quais a nação de Israel foi edificada. Somente a graça de Deus para usá-las como instrumento para o estabelecimento de uma nação tão crucial para todas as famílias da terra.
Ainda que nossa vida seja permeada por pecados como a idolatria do coração, Deus em sua graça nos ama a ponto de mudar nosso caráter e de fazer de nós um bênção e parte de seu plano maravilhoso. Apesar de ter passado muitos anos de sua vida idolatrando o marido, Deus concedeu a Lia um privilégio que pertence apenas a uma linhagem em toda a história da humanidade. Ela foi a precursora daquele que salvou a sua vida séculos mais tarde. Deus a usou para preparar a descendência do Messias, Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Redentor de todo aquele que o receber pela fé.
Fonte:  Pr. Charles 

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